domingo, 18 de julho de 2010

Ecos do Araguaia: Os mais pobres fora da pauta!

É muito comum, no Brasil, a utilização da expressão "a Justiça" quando alguém quer referir-se ao Poder Judiciário. Assim, não é raro ouvir-se que um conflito será "decidido pela Justiça", ou então, que a Justiça "demora muito para dar a palavra final" sobre os conflitos de direitos.


* Por Dalmo de Abreu Dallari

Essa identificação do Judiciário com a Justiça, que não é feita somente por leigos, sendo comum também na linguagem dos especialistas da área jurídica, corresponde a uma idealização do papel do Poder Judiciário, que é desejável mas, infelizmente, muitas vezes não se confirma na prática.

Uma decisão recente de um juiz federal, noticiada em poucas palavras para informar sobre uma consequência social negativa, chamou a atenção dos que esperam o Judiciário justo e deixou sérias dúvidas quanto à sua fundamentação legal, tendo sido apresentada como justificativa apenas uma sucinta e contraditória explicação dada pelo juiz que proferiu a decisão.

A questão envolvida nessa decisão é o pagamento de indenização a pessoas modestas, vítimas de violências da ditadura militar no quadro da chamada Guerrilha do Araguaia. Buscando informações sobre a localização e movimentação dos guerrilheiros, contingentes do Exército efetuaram a prisão de pequenos agricultores, barqueiros, lavadeiras e pequenos comerciantes daquela região. Muitos foram submetidos a práticas de tortura e os pequenos agricultores foram seriamente prejudicados, impedidos de trabalhar em suas pequenas propriedades agrícolas, de efetuar a conservação das áreas, de plantar e colher nas épocas certas e de cuidar dos animais.

Em junho de 2009, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, esteve no local e publicamente anunciou a concessão de indenização a mais de quarenta moradores da região que, por decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, iriam receber indenizações que variavam de 80 a 140 mil reais. Entretanto, um deputado estadual carioca, Flávio Bolsonaro, eleito pelo PP, propôs ação na Justiça Federal do Rio de Janeiro pedindo a suspensão dos pagamentos. E o juiz José Carlos Zebulum, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, sem ouvir os interessados, que são os destinatários das indenizações e o governo federal que as concedeu por reconhecer que eram legais e justas, determinou a sustação dos pagamentos, por decisão liminar.

O papel do juiz

Obviamente, o juiz, que decidiu rapidamente, não teve tempo para examinar com a necessária atenção a fundamentação legal do pedido, desprezando o pressuposto de que as indenizações foram concedidas mediante processos regulares em que constam todos os fundamentos de fato e de direito. É oportuno observar que o autor do pedido da suspensão dos pagamentos vive no Rio de Janeiro, muito longe do Araguaia, é tido como defensor da ditadura militar e intolerante quanto aos movimentos em favor dos direitos sociais.

A justificativa do juiz que concedeu a liminar é evidentemente contraditória, deixando patente que a motivação para a concessão da liminar esteve bem longe da preocupação com a Justiça. De fato, disse o juiz Zebulum que ouvir as partes interessadas causaria tumulto no processo, o que é absolutamente inaceitável, pois diariamente, em muitos processos, são ouvidas partes contrárias sem que ocorra qualquer tumulto. Disse ainda o juiz que ouvir os interessados prejudicaria a celeridade da prestação jurisdicional.

O fato é que a concessão da liminar, interrompendo o curso normal do processo, é que prejudicou a celeridade, o que parece ter sido precisamente o objetivo do autor da ação e do próprio juiz. Com efeito, graças a essa liminar foi suspenso o pagamento das indenizações aos modestos agricultores, mantendo-se a suspensão até que se decida se esta foi concedida para fazer Justiça ou para satisfação de caprichos e intolerância que são opostos à Justiça.

Seria muito bom, para esclarecer a opinião pública e para a correta avaliação do papel desempenhado pelo juiz neste processo, que a imprensa desse mais atenção ao caso, pois além dos interesses dos pobres agricultores está em questão o respeito à verdadeira Justiça.

Publicado no site: www.observatoriodaimprensa.com.br

* Dalmo de Abreu Dallari é jurista. Em 1996 tornou-se professor catedrático da Unesco na cadeira de Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância, criada na Universidade de São Paulo.

http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=133049&id_secao=1

Anistiado pobre fica sem receber indenização!

Processos referentes a vítimas mais humildes são tão demorados que elas estão morrendo sem ter recebido nenhum centavo
28 de junho de 2010 - às 0h:00

Leonencio Nossa - O Estado de S.Paulo


Vítimas do regime militar das camadas mais humildes da população têm ficado à margem da concessão de indenizações pela Comissão de Anistia. Os processos referentes a barqueiros, agricultores, lavadeiras e pequenos comerciantes que sofreram tortura são tão demorados que eles estão morrendo de velhice sem ter recebido um centavo sequer.

Esse é o caso do comerciante Renovato Pereira Neto, de 71 anos, de São Geraldo do Araguaia. Acusado pelo Exército de vender munição para integrantes da Guerrilha do Araguaia, no começo dos anos 1970, ele passou quase três décadas sofrendo os traumas de choques elétricos. Em 2004, conseguiu entrar com pedido de indenização. Renovato morreu dois anos depois sem conseguir receber o benefício.

Dos 44 anistiados do Araguaia, 5 já morreram. "A Justiça tem de tomar uma decisão definitiva. Ou permite os pagamentos ou acaba de vez com a esperança do pessoal", afirmou Sezostrys Alves da Costa, representante da Associação dos Torturados da Guerrilha do Araguaia. A associação conta com 280 integrantes.

O Estado revelou na edição de ontem que indenizações de R$ 4 bilhões pagas ou aprovadas pela Comissão de Anistia para perseguidos políticos poderão ter os valores revistos pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Proposta em análise no órgão prevê a possibilidade de reduzir os benefícios concedidos aos anistiados. As indenizações já aprovadas somam um total de R$ 4,2 bilhões.

Suspensos. Em junho do ano passado, o então ministro da Justiça Tarso Genro entregou simbolicamente, numa praça de São Domingos, no Sul do Pará, a indenização à família de Renovato e a outros 43 moradores pobres que passaram pelos campos de tortura e foram reconhecidos como anistiados políticos. Os pagamentos, no entanto, foram suspensos por decisão da Justiça Federal.

De 1995 até 2007, o governo só tinha concedido duas anistias para pessoas de camadas mais pobres. Tarso afirmou que, a partir dali, o Ministério da Justiça priorizaria as vítimas esquecidas da ditadura.

Desde a suspensão dos benefícios dos agricultores do Araguaia, no ano passado, a Advocacia-Geral da União não conseguiu, porém, derrubar a liminar que bloqueou os pagamentos.

A decisão que suspendeu indenizações que variavam de R$ 83 mil a R$ 142 mil aos moradores do Araguaia foi tomada bem longe dali. O juiz José Carlos Zebulum, da 27.ª Vara Federal do Rio de Janeiro, aceitou pedido de suspensão apresentada pelos advogados do deputado estadual Flávio Bolsonaro (PP-RJ). O pai de Bolsonaro, Jair, deputado federal também pelo PP, representa setores conservadores das Forças Armadas no Congresso.
O presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, reclama que o governo e os agricultores do Araguaia não foram ouvidos pela Justiça do Rio. "Não me surpreendem ações ideológicas de determinados grupos militares e reacionários. O que me surpreende é um juiz conceder essa liminar sem ouvir o Estado brasileiro e os camponeses", disse Abrão.

Tumulto. Na justificativa de sua decisão, o juiz José Carlos Zebulum escreveu que ouvir os camponeses "causaria evidente tumulto processual, prejudicando a eficiência e celeridade da prestação jurisdicional".
Sezostrys Costa disse que a suspensão dos pagamentos causou desespero entre os anistiados do Sul do Pará, pessoas que vivem em situação de miséria e com problemas de saúde.

Zé da Rita. José Francisco Pinto, o Zé da Rita, que participou de patrulhas militares era um dos perseguidos por grupos de direitos humanos. Ele reivindicava indenização por "trabalhar como escravo" dos militares. Zé da Rita morreu em abril deste ano.


http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100628/not_imp573056,0.php