É muito comum, no Brasil, a utilização da expressão "a Justiça" quando alguém quer referir-se ao Poder Judiciário. Assim, não é raro ouvir-se que um conflito será "decidido pela Justiça", ou então, que a Justiça "demora muito para dar a palavra final" sobre os conflitos de direitos.
* Por Dalmo de Abreu Dallari
Essa identificação do Judiciário com a Justiça, que não é feita somente por leigos, sendo comum também na linguagem dos especialistas da área jurídica, corresponde a uma idealização do papel do Poder Judiciário, que é desejável mas, infelizmente, muitas vezes não se confirma na prática.
Uma decisão recente de um juiz federal, noticiada em poucas palavras para informar sobre uma consequência social negativa, chamou a atenção dos que esperam o Judiciário justo e deixou sérias dúvidas quanto à sua fundamentação legal, tendo sido apresentada como justificativa apenas uma sucinta e contraditória explicação dada pelo juiz que proferiu a decisão.
A questão envolvida nessa decisão é o pagamento de indenização a pessoas modestas, vítimas de violências da ditadura militar no quadro da chamada Guerrilha do Araguaia. Buscando informações sobre a localização e movimentação dos guerrilheiros, contingentes do Exército efetuaram a prisão de pequenos agricultores, barqueiros, lavadeiras e pequenos comerciantes daquela região. Muitos foram submetidos a práticas de tortura e os pequenos agricultores foram seriamente prejudicados, impedidos de trabalhar em suas pequenas propriedades agrícolas, de efetuar a conservação das áreas, de plantar e colher nas épocas certas e de cuidar dos animais.
Em junho de 2009, o então ministro da Justiça, Tarso Genro, esteve no local e publicamente anunciou a concessão de indenização a mais de quarenta moradores da região que, por decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, iriam receber indenizações que variavam de 80 a 140 mil reais. Entretanto, um deputado estadual carioca, Flávio Bolsonaro, eleito pelo PP, propôs ação na Justiça Federal do Rio de Janeiro pedindo a suspensão dos pagamentos. E o juiz José Carlos Zebulum, da 27ª Vara Federal do Rio de Janeiro, sem ouvir os interessados, que são os destinatários das indenizações e o governo federal que as concedeu por reconhecer que eram legais e justas, determinou a sustação dos pagamentos, por decisão liminar.
O papel do juiz
Obviamente, o juiz, que decidiu rapidamente, não teve tempo para examinar com a necessária atenção a fundamentação legal do pedido, desprezando o pressuposto de que as indenizações foram concedidas mediante processos regulares em que constam todos os fundamentos de fato e de direito. É oportuno observar que o autor do pedido da suspensão dos pagamentos vive no Rio de Janeiro, muito longe do Araguaia, é tido como defensor da ditadura militar e intolerante quanto aos movimentos em favor dos direitos sociais.
A justificativa do juiz que concedeu a liminar é evidentemente contraditória, deixando patente que a motivação para a concessão da liminar esteve bem longe da preocupação com a Justiça. De fato, disse o juiz Zebulum que ouvir as partes interessadas causaria tumulto no processo, o que é absolutamente inaceitável, pois diariamente, em muitos processos, são ouvidas partes contrárias sem que ocorra qualquer tumulto. Disse ainda o juiz que ouvir os interessados prejudicaria a celeridade da prestação jurisdicional.
O fato é que a concessão da liminar, interrompendo o curso normal do processo, é que prejudicou a celeridade, o que parece ter sido precisamente o objetivo do autor da ação e do próprio juiz. Com efeito, graças a essa liminar foi suspenso o pagamento das indenizações aos modestos agricultores, mantendo-se a suspensão até que se decida se esta foi concedida para fazer Justiça ou para satisfação de caprichos e intolerância que são opostos à Justiça.
Seria muito bom, para esclarecer a opinião pública e para a correta avaliação do papel desempenhado pelo juiz neste processo, que a imprensa desse mais atenção ao caso, pois além dos interesses dos pobres agricultores está em questão o respeito à verdadeira Justiça.
Publicado no site: www.observatoriodaimprensa.com.br
* Dalmo de Abreu Dallari é jurista. Em 1996 tornou-se professor catedrático da Unesco na cadeira de Educação para a Paz, Direitos Humanos e Democracia e Tolerância, criada na Universidade de São Paulo.
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=133049&id_secao=1
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