Acabo de chegar ao hotel em que estou hospedado em Marabá, depois de uma jornada de um dia inteiro andando pela mata, na Base de Selva Cabo Rosas, com militares, antropólogos, geológos, médicos legistas, Aldo Arantes e reporteres ávidos por furos e matérias de uma vida inteira.
Por vezes, naquele nicho de selva amazônica preservada, entre subidas e descidas, passando por grotas e percorrendo um terreno acidentado pensei em que tipo de coisa, afinal, estamos envolvidos?
Me vêm em mente as memórias de uma vida inteira, a militância, a honestidade que sempre devemos ter com nossas idéias, as histórias que fui colhendo de guerrilheiros e camponeses por mais de uma década. Além disso têm as andanças, currutelas, finais de tarde onde o caudaloso Araguaia parece se refugiar num céu imenso capaz de fazer sonhar todos os meninos de minha infância.
O Brasil quando se debruça sobre o Araguaia, como aspecto decisivo para a efetiva construção do direito à memória e a verdade, passa à limpo um tortuoso período da vida nacional e busca consolidar a sua democracia. E essa é a questão política de fundo que deve iluminar nossas mentes e corações.
Tal empreendimento é uma tarefa historica e necessidade para o próprio desenvolvimento da vida nacional brasileira porque o processo democrático está em construção permanente, é algo perene, em movimento, dinâmico e está vinculado à aspirações profundas no sentido de entender e interpretar o Brasil contemporâneo.
A luta a qual estamos inseridos vai se iniciar, ou pelo menos ter um marco fundamental apartir da primeira caravana de familiares que, no segundo semestre de 1980 percorreu os sertões do baixo-araguaia, sob o cutelo do controle extremo do Conselho de Segurança Nacional que, a rigor, iniciava, através do Grupo Executivo de Terras Araguaia-Tocantins (GETAT) a militarização das questões fundiárias na região do Bico-do-Papagaio. Alí, nos dois anos anteriores cerca de 250 mil hectares de terras foram ocupados pelo movimento social camponês.
Fico pensando na fibra daqueles pais e mães, já idosos, percorrendo de ônibus ou em barcos a imensa região banhada pelo rio dos karajás e todos, segundo o que conta a memória, sem reclamar de absolutamente nada, a não ser do Exército de então que fez de seus filhos pessoas desaparecidas.
Alí, naquela primeira expedição, que sistematizou um conjunto de informações sobre o conflito armado no sul do Pará, algumas questões foram indicadas e uma a uma comprovadas ao longo destes 29 anos.
A primeira verificação dos caravaneiros foi o fato de que realmente houve a guerrilha do Araguaia.
A segunda, alvo de grande debate da esquerda brasileira no início da década de 1980 era o fato se aquele movimento teve ou não apoio popular.O rigor documental, e nisto se inclui a memória camponesa, indicam amplo apoio dos camponeses à causa dos combatentes.
A terceira dizia respeito à consciência de que a população local foi absolutamente massacrada e violada em seus direitos e, a decisão de anistiar e reparar economicamente muitos daqueles torturados é um importante passivo em direitos humanos do país que agora, finalmente, vai se resolvendo.
A quarta e última conclusão da caravana de 1980 fora o fato de que muitos guerrilheiros haviam sido presos com vida e se encontravam desaparecidos.
Recentemente, o Major Curió decidiu abrir os arquivos e revelou que 41 brasileiros foram mortos covardemente, à sangue frio.
Uma pendência, como uma simbiose, acompanha todo o leito deste processo tortuoso: onde estarão os mortos e desaparecidos do Araguaia?
No curso das últimas três décadas essa questão têm aparecido na vida brasileira como um episódio que nos agrilhoa ao passado, num verdadeiro AI-5 mental que não nos deixa, em definitivo, cuidar com plenitude das tarefas do futuro no sentido de aperfeiçoar nossa vida democrática e as instituições republicanas, além de ir calcificando uma cultura política da impunidade que rebaixa, cada vez mais, a força do interesse popular no sentido de se dirigir ao centro das decisões que são tomadas em nome da maioria. Ora, porque não é em nome da verdade e da justiça que votamos ou somos votados?
A questão é que os recalcitrantes que insistem em esconder arquivos são espécimes unidos pela força gravitacional do obscurantismo que só existe e terá vida enquanto o nosso processo democrático não for aperfeiçoado. E elevar o nível da democracia brasileira passa por resolver, em definitivo, os arquivos que toda a sociedade têm direito de saber, além de fazer a entrega daqueles que continuam desaparecidos. Essa é a tarefa de feição democrática na qual nossas forças armadas, em particular o Exército é chamado à fazer.
Não é preciso ser cientista social para saber que em todo o organismo há contradições e isso se aplica aos que estão na caserna.
De um lado há setores da ativa e principalmente da reserva que acham que o resgate dos despojos é obrigação das familías e da esquerda que vão até pontos remotos da amazônia com uma picaretinha na mão escavucar para lá, no sol escaldante que faz resfolegar qualquer ser vivo, encontrar pessoas que tombaram não por banditismo, mas por defender idéias.
Essa turma elege a caricatura mais infâme do passado, o Deputado Federal Jair Bolsonaro e mantêem, via ponto com sites fascistizantes.
De outro lado, penso, pode haver setores interessados em aliviar o desgaste público das forças armadas quando questões de arquivos e desaparecidos políticos vêm a tona, seja pela decisão judicial ou novos fatos que revelam a bestialidade daqueles que comandaram o país entre 1964-1985.
Questão à saber e se haveremos de nos render aos recalcitrantes que fizeram da tortura prática contumaz do aparato estatal brasileiro. Se as forças vivas que atuam no leito desta quadra histórica não travarem o bom combate o ensaio hondurenho poderá sugerir uma alternativa para a direita neoliberal que têm presença forte na mídia, nos parlamentos e no judiciário. Aqui vale a lembrança de um lema da antiga UDN: "o preço da liberdade é a eterna vigilância".
Quando a Nação brasileira prover o milenar direito de podermos enterrar, com as honras de nossa época aqueles que lutaram pelo futuro que afinal estamos vivendo teremos consolidado importante passo para que o passado jamais retorne à nossas casas com suas madrugadas sombrias.
Cada vez mais creio que a superação de toda uma época historica é sobretudo decisão política. O redimensionamento do Grupo de Trabalho Tocantins no sentido de sua ampliação e a decidida luta pela memória nacional é o caminho seguro para o futuro que queremos ter.
Por Paulo Fonteles Filho.
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